Uma vez aconteceu que iam falando das vantagens da riqueza.
- Valem muito os bens da fortuna, dizia Estácio; eles dão a maior felicidade da terra, que é a independência absoluta. Nunca experimentei a necessidade; mas imagino que o pior que há nela não é a privação de alguns apetites ou desejos, de sua natureza transitórios, mas sim essa escravidão moral que submete o homem aos outros homens.
A riqueza compra até o tempo, que é o mais precioso e fugitivo bem que nos coube. Vê aquele preto que ali está? Para fazer o mesmo trajeto que nós, terá de gastar, a pé, mais uma hora ou quase.
O preto de quem Estácio falara, estava sentado no capim, descascando uma laranja, enquanto a primeira das duas mulas que conduzia, olhava filosoficamente para ele. O preto não atendia aos dous cavaleiros que se aproximavam. Ia esburgando a fruta e deitando pedaços de casca ao focinho do animal, que fazia apenas um movimento de cabeça, com o que parecia alegrá-lo infinitamente.
Era homem de cerca de quarenta anos; ao parecer, escravo. As roupas eram rafadas; o chapéu que lhe cobria a cabeça, tinha já uma cor inverossímil. No entanto, o rosto exprimia a plenitude da satisfação; em todo caso, a serenidade do espírito.
Helena relanceou os olhos ao quadro que o irmão lhe mostrara. A passarem por ele, o preto tirou respeitosamente o chapéu e continuou na mesma posição e ocupação que dantes.
- Tem razão, disse Helena: aquele homem gastará muito mais tempo do que nós em caminhar. Mas não é isto uma simples questão de ponto de vista? A rigor, o tempo corre do mesmo modo, que o esperdicemos, quer o economizemos. O essencial não é fazer muito cousa no menor prazo; é fazer muita cousa aprazível e útil.
Para aquele preto o mais aprazível é, talvez, esse mesmo caminhar a pé que lhe alongará a jornada, e lhe fará esquecer o cativeiro, se é cativo. É uma hora de pura liberdade.
Machado de Assis em “Helena” – Livraria Garnier, Rio de Janeiro, p.49-50.
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